Indagar-se
sobre os conceitos na obra de Mikhail Bakhtin é sempre um desafio, pois
sabe-se que aí está tudo em movimento permanente e não há terreno
sólido para as construções formais. Mesmo porque, se há alguma coisa que
caracterize o seu pensamento, essa alguma coisa é uma adesão inconteste
à filosofia do movimento. Nada é, em sua obra, definitivo, nada está
estabelecido permanentemente, tudo oscila com as alterações do quadro
histórico, em que as ações humanas se desenrolam.
Minha proposta, hoje, é tentar alinhavar em linhas gerais como seu pensamento trabalha com a linguagem.
Este
é um terreno minado, pelas muitas teorias e filosofias que dele se
ocuparam. Mas, tanto melhor, pois será do diálogo de tantas vozes
discordantes que poderá surgir uma possibilidade de entendimento desse
fenômeno que é absolutamente central tanto na vida social, como na nossa
existência pessoal.
Talvez,
uma primeira aproximação possa ser feita pela comparação do seu
pensamento com o de Ferdinand de Saussure, fundador da lingüística
tradicional. Este, ao aproximar-se do fenômeno da linguagem, assim se
expressa:
O
lingüista genebrino faz um movimento epistemológico, no mínimo curioso.
Primeiro admite que a linguagem é diferente da língua, que ele define
como o objeto de estudo da lingüística. A língua é uma parte apenas da
linguagem que ele admite ser muito mais ampla que a primeira. Logo, a
lingüística não tem como objeto de estudo a linguagem humana, mas uma
parte dela.
De
outra parte, ao afirmar que a língua é um “produto social da faculdade
da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo
corpo social para possibilitar o exercício de tal faculdade pelos
indivíduos”, Saussure está nos dizendo que a língua é apenas um
instrumento que possibilita o exercício da linguagem pelos indivíduos,
ademais de ser um conjunto de convenções. Trocando em miúdos, a língua
não pode ser confundida com o uso da linguagem humana. Até porque o
nosso lingüista vai afirmar, também, que
Ou
seja, Saussure descarta a possibilidade de um conhecimento científico
da linguagem humana e, em função disto, determina que se estude apenas o
seu aparato técnico. É um pouco como dizer que “já que não posso
entender sistematicamente a música, vou estudar o tocador de cds”.
Isto,
em absoluto, não desqualifica a estudo da lingüística que, de todo
modo, é fundamental. Apenas sublinha claramente que ela não foi
construída para entender a linguagem humana, mas seu instrumental
técnico, a língua. Isto explica porque o campo da semântica sempre foi o
irmão mais pobre em estudos e em bibliografia lingüísticas. Exatamente
porque ele aponta para a única coisa que fica realmente fora da língua,
ou seja, o mundo. Um clarividente lingüista americano, Edward Sapir,
afirmou, com propriedade, que a semântica não pertencia à lingüística,
mas à antropologia. Num gesto que marca bem claramente o problema que
estamos tentando desenhar.
O
estudo da língua é fundamental, sem ele não avançamos muito no campo da
linguagem; mas, por outro lado, é insuficiente, se nosso objetivo é
conhecer o exercício efetivo da fala em sociedade.
A
partir daí, o mais é decorrência deste movimento fundador básico. Para
Saussure, além da linguagem e da língua, existe ainda a fala. A
linguagem é incognoscível; a língua é o estudo dos signos e das suas
regras de combinação; a fala é o mero exercício individual dentro dos
limites da língua e, igualmente, é descartada como objeto de estudo da
lingüística. Ou seja, nem a linguagem — fenômeno social por excelência
—; nem a fala — o exercício pessoal da linguagem — podem ser estudados
pela lingüística. Ela vai dedicar-se inteiramente ao estudo do
instrumental que nos possibilita a fala. Para entender melhor tal
afirmação — e uso aqui uma gratificante experiência com meu filho caçula
de um ano e três meses de idade — uma criança que ainda não fala, nem
por isso deixa de possuir linguagem. Ela se comunica, expressa seus
desejos, manifesta seus desagrados, busca seus objetivos práticos no
dia-a-dia. Mas ela ainda não fala. E não fala porque não domina
totalmente o instrumental técnico que é a língua. Não a usa como
emissor, mas a entende perfeitamente como receptor. Ou seja, dela tem um
domínio parcial, com ela se orienta no mundo, mas não lhe conhece as
manhas e as produções vocais, que há de aprender por imitação direta dos
falantes que a cercam. Mas não se pode dizer que não tenha linguagem.
E, voltando atrás no seu tempo de vida, antes mesmo de que pudesse
entender a língua falada, já tinha uma linguagem, com a qual se ia
inserindo no mundo adulto e agindo sobre ele. Não têm os pais que
aprender a identificar diferentes tipos de choro de um bebê, para poder
atendê-lo, quando é o caso, e desatendê-lo, quando não?
Isto
pode tornar os limites entre os nossos dois teóricos — Saussure e
Bakhtin — mais claros e mais palatáveis. Ou seja, torná-los acessíveis
ao maior número. Pois se há uma coisa de que quero afastar-me é de uma
universidade vem desaprendendo gradualmente a falar claro e em língua de
gente.
Bakhtin
— que é o objeto de minha exposição nesta mesa — situa-se quase como
antípoda de Saussure e, por isso, nós que o estudamos, não o vemos como
um lingüista, mas como um filósofo da linguagem. E por que? Porque, para
ser lingüista ele teria que aceitar as premissas da lingüística
traçadas por Saussure, o que ele absolutamente não aceita. Quase
contemporâneo de Saussure, Bakhtin critica duramente os fundamentos de
sua concepção teórica ao longo de sua obra, mas com especial atenção em
Marxismo e Filosofia da Linguagem.
E qual é, basicamente, sua proposta teórica?
Bakhtin
pretende, no fundamental, entender o exercício da linguagem humana por
parte dos indivíduos. Ele escolhe a música e não o CdPlayer, por difícil
que seja o caminho a desbravar. O que Saussure excluiu do estudo da
lingüística é exatamente o que atrai as atenções de Bakhtin.
Para
ele o único objeto real e material de que dispomos para entender o
fenômeno da linguagem humana é o exercício da fala em sociedade. A
língua falada, nas casas e nas feiras, na rua e na igreja, no quartel e
na repartição, no baile e no bordel, é sempre o que existe de
materialmente palpável para o estudo. Para ele, a língua — que Saussure
considera o objeto da lingüística — não passa de um modelo abstrato,
construído pelo teórico a partir da linguagem viva a real. Coerentemente
Saussure afirmava que “não é o objeto que precede o ponto de vista, mas
é o ponto de vista que cria o objeto”. No caso da lingüística é
exatamente o que ocorre: o seu objeto é criado a partir do ponto de
vista de que a linguagem humana não pode ser objeto de conhecimento
científico, assim como o exercício da fala.
Para
entender um pouco mais a fundo tal diferença, é necessário remontar às
origens filosóficas de cada um deles. Saussure surge em cena, durante a
onda ascendente do positivismo, que balizava, de forma muito ampla, a
produção da ciência ocidental. E o método por excelência do positivismo é
o quantitativo. Só é real e material aquilo que pode ser medido,
pesado, tocado, manipulado. Era uma forma de contrapor-se às teses
escolásticas e metafísicas que constituíram, durante séculos, o cenário
do pensamento no Ocidente.
Já
Bakhtin surge na cena científica, na Rússia Soviética nascente e em que
o marxismo, na sua leitura leninista e stalinista, constituía o único
pensamento aceitável. Bakhtin se defronta, então, com dois problemas ao
mesmo tempo. De um lado, pensar o marxismo com Marx e não com o Partido
Comunista; de outro, discutir o modelo ocidental, positivista por
excelência. Sua saída foi buscar apoio em uma erudição literária
invejável e um conhecimento filosófico sofisticado. A erudição literária
ofereceu-lhe um contacto privilegiado com a linguagem humana real e o
conhecimento filosófico uma vacina eficaz contra as simplificações
positivistas seja do marxismo oficial, seja da ciência que se fazia no
Ocidente. Sua escolha foi decididamente por uma filosofia do movimento,
que vem de Heráclito aos nossos dias. E, esta opção pelo movimento,
afasta-o decididamente das filosofias da forma, que trabalham com um
mundo pronto, acabado e congelado em formas imutáveis, cuja origem
remonta a Platão com o seu mundo das idéias, fora do tempo e fora do
espaço.
Bakhtin
trabalha com um mundo em movimento e em perene transformação, seu
objeto está sempre em processo, não se submete a uma forma fixa e
imutável.
E
é exatamente por isso que ele não pode aceitar que uma língua seja um
conjunto de formas (signos) e suas regras de combinação (sintaxe). Para
Saussure, um signo é uma relação entre um significante (um som, uma
imagem acústica ou um grafema) e um significado (um conceito). Para
Bakhtin, o significado é uma impossibilidade teórica. Um signo,
aceitando-o provisoriamente, não tem um significado, mas receberá tantas
significações quantas forem as situações reais em que venha a ser usado
por usuários social e historicamente localizados. Em uso, a língua é
muito diferente do seu modelo teórico. Para a lingüística um signo tem
um significado. Sabemos entretanto que, ao falar, nós estamos
diariamente modificando, acrescentando, excluindo, torcendo os
significados codificados pela língua.
Mas,
muito mais do que isto, para Bakhtin, já que se trata de linguagem e
não de língua, a unidade básica não pode ser o signo, mas o enunciado.
Um enunciado não é um signo pela simples razão de que para existir ele
exige a presença de um enunciador (quem fala, quem escreve) e de um
receptor (quem ouve, quem lê). O signo faz parte de uma construção
teórica que dispensa os sujeitos reais do discurso. Um signo, num
dicionário, não é e não pode ser um enunciado. Este exige uma realização
histórica. Um enunciado acontece em um determinado local e em um tempo
determinado, é produzido por um sujeito histórico e recebido por outro.
Cada enunciado é único e irrepetível. A mesma frase, exatamente a mesma,
pronunciada em situações sociais diferentes, ainda que pelo mesmo
enunciador, não constitui um mesmo enunciado e não pode constituir.
Imaginem que, daqui a algumas horas, eu leia este mesmo texto, palavra a
palavra, na Estação Rodoviária de Campos, para um público que não
esperava ouvir-me. Será o mesmo texto, mas seguramente não o mesmo
enunciado. Aqui, leio uma palestra para um público que, presumivelmente
(eu espero!), deseja ouvir-me dissertar sobre as questões da linguagem
num teórico de nome estrangeiro e complicado. Lá, as pessoas estarão
possivelmente esperando as chamadas para as suas viagens e sem nenhum
interesse pelas coisas que eu venha a dizer. Tudo o que conseguirei é
uma fama de maluco, maior do que a já carrego, por ser professor
universitário nesse nosso triste país.
O
enunciado não é um conceito meramente formal; um enunciado é sempre um
acontecimento. Ele demanda uma situação histórica definida, atores
sociais plenamente identificados, o compartilhamento de uma mesma
cultura e o estabelecimento necessário de um diálogo. Todo enunciado
demanda outro a que responde ou outro que o responderá. Ninguém cria um
enunciado sem que seja para ser respondido. Mesmo isto que eu agora
leio, ainda que não venha a receber respostas exteriorizadas, por certo
as provocará interiormente e, desde já, esboço as minhas réplicas neste
diálogo sem fim.
Como
se vê, cada enunciado é um ato histórico novo e irrepetível. E é este
enunciado a unidade básica do conceito de linguagem de Bakhtin. Toda
linguagem só existe num complexíssimo sistema de diálogos, que nunca se
interrompe. Ao decidir falar sobre este tema, nesta mesa, retomei meu já
longo diálogo com Mikhail Bakhtin; mas com Paulo Bezerra, meu amigo
dileto e tradutor da sua obra; mas com minhas experiências ao lidar com a
linguagem, antes de conhecer a obra de Bakhtin; mas com outros textos
que venho escrevendo e lendo ao longo de uma vida de estudos. Tudo isto
está aqui, neste enunciado que, neste momento, centraliza o diálogo com
essa coleção tão ampla de outros enunciados.
Mas,
para que adquira consistência histórica e possa acontecer, este
enunciado que agora leio precisou, primeiro, dialogar com um público
ainda virtual, no momento em que foi escrito, e, agora, dialogar, ao
vivo e em cores, com vocês, seus receptores reais. Dá para perceber que
não estou me referindo a apenas um enunciado, mas a, pelo menos, dois.
Quando, no meu escritório em minha casa do Rio de Janeiro, dialogava com
um público virtual — que é o único de que disponho agora quando escrevo
— produzia um enunciado. Agora, quando leio este texto — que, para o
escritor que está escrevendo, “esse agora” é futuro —, dialogando com um
público real (e seguramente diferente do que poderia imaginar quando
escrevia), produzo outro enunciado, ainda quando o texto seja exatamente
o mesmo (pelo menos até esta frase, pois não posso ainda saber das
futuras que chegarão a seu turno).
Mas,
notem bem, para poder escrever o que escrevo tenho que construir um
receptor muito definido. Sei que vou falar na UENF, em Campos, para um
público universitário ligado preferencialmente à área de Comunicação,
com a presença inteligente e vigilante do Mário Galvão — companheiro de
tantas jornadas de vida —, possivelmente com a presença de colegas da
área que estarão conferindo os meus possíveis desvios de rota e assim
por diante. Sem construir esta imagem de enunciatário, não teria como
escrever, pois só os chupadores de nuvens são capazes de escrever para
ninguém. Pois mesmo os solilóquios dos momentos de crise e solidão
pessoal são feitos para um enunciatário que construímos, que é um outro
eu, capaz de sentir peninha de mim mesmo.
Mas,
para poder escrever o que escrevo, tenho que construir uma imagem de
mim mesmo, uma imagem de autor. Tenho que avaliar que expectativa
depositam em mim, que imagem construíram desse senhor que vem de fora
para lhes falar. Tenho que me perguntar se já leram algum de meus
textos, se já tinham referências prévias ou se serei um completo
desconhecido. Ou seja, quem lhes escreve também teve que se construir
como escritor, para que o diálogo pudesse se estabelecer. Mas, assim
como o púbico real não há de coincidir com aquele que imaginei
previamente, por outro lado, quem escreve neste momento não é a mesma
pessoa que será daqui a quatro dias, quando deverá estar lendo o que
agora escreve. O enunciador de hoje não será o mesmo que lerá o texto
no dia 1º. No mínimo estará quatro dias mais velho, o que, no meu caso,
já constitui um sério problema...
Serão enunciados diferentes, unidades de análise distintas.
Por
outro lado, todo diálogo — ou seja, todo enunciado — além de um
enunciador e de um enunciatário ou receptor, demanda a presença daquilo
que Bakhtin denominou de o terceiro do diálogo. É que todo diálogo (ou
todo discurso) sempre pressupõe alguém diante de quem se dialoga. Posso
supor, neste momento e neste diálogo, que o terceiro, para mim, possa
ser o próprio Bakhtin (ou seja, a imagem que tenho dele, pois não sou
espírita), que me olha preocupado com o que ando a fazer com suas
idéias, ou mesmo seu representante mais autorizado nesta mesa, meu amigo
Paulo Bezerra. É com a responsabilidade de não lhe ser muito infiel que
falo diante dessa imagem de Bakhtin que, de alguma forma, baliza meu
discurso. Ele constitui o terceiro diante de quem em falo. Mas, este é
apenas o meu “terceiro”. Para quem me ouve, os terceiros poderão e
deverão variar. Imagino, por exemplo, um leitor desses problemas que
discorde do pensamento que tento expor aqui. Ele, seguramente, me ouvirá
com as orelhas do espírito afiadíssimas pelas suas convicções
filosóficas, buscando os argumentos para me contradizer. O seu
“terceiro” será constituído por essas mesmas convicções. Já um outro,
leitor de Bakhtin que com ele possa concordar, estará me ouvindo tendo
como “terceiro” a sua imagem de Bakhtin e estará atentíssimo, buscando
concordâncias que o satisfaçam e registrando discordâncias que o
conduzirão ao diálogo.
Resumindo,
sempre construímos um enunciado a partir de uma referência axiológica,
um conjunto de valores que, paradoxalmente, darão consistência ao que
dizemos e estarão vigiando a nossa adequação ou não às propostas que
dizemos defender. Este conjunto de valores constituirão a imagem do
“terceiro do diálogo”. É por isso que ele pode ser representado por uma
imagem de autor, por uma autoridade, religiosa ou laica, por uma
ideologia, por entidades como classe, história, destino e quejandos.
Ou
seja, falamos sempre diante de alguém ou de algo que acreditamos
respeitar. E, mesmo quando falamos contra alguém, o fazemos diante de
alguém ou algo que supomos concordar com nossa avaliação. É o terceiro
que nos ampara e nos vigia, na difícil tarefa de entender o mundo e os
nossos semelhantes.
Dando
um passo adiante, na construção do enunciado, pode-se observar que
existem duas dimensões distintas e complementares: de uma lado, existe a
materialidade técnica do texto e, de outro, aquilo que escapa aos
limites de língua, para ascender ao plano da linguagem. Nas palavras do
próprio Bakhtin:
Vemos
assim que aquilo que diz respeito à língua é o que é repetível, o que é
recorrente, o que é reprodutível. O que, enfim, não tem identidade
própria. Os fonemas (ou as letras na linguagem escrita), os
significantes, a sintaxe, enfim, os signos e sus regras de combinação,
na linguagem de Saussure. As mesmas palavras podem participar de
enunciados diferentes, as mesmas figuras de retórica, uma mesma
construção sintática. Tudo isto fica no domínio da língua, do aparato
técnico da linguagem. Mas o que efetivamente identifica um enunciado é
aquilo que ele efetivamente diz, naquele momento, para aquele
enunciatário, nas condições específicas em que é produzido e recebido.
Assim, uma única e mesma palavra dicionarizada — repetível, portanto —
pode participar de enunciados diferentes. Basta que mudem as condições
de sua enunciação. O clássico exemplo da palavra “fogo”. Se pronunciada
pelo comandante de um batalhão de fuzilamento para os seus comandados,
diante de um condenado atado ao muro de execuções, constituirá um
enunciado completamente diferente, do que enunciada por um fumante
aflito, com um cigarro apagado na mão, dirigindo-se a um possível
possuidor de fósforos ou isqueiro. Ou, um passeante noturno solitário,
flagrando um princípio de incêndio e dirigindo-se a quem quer possa
prestar auxílio na emergência. O que se repete é a palavra e esta
pertence ao plano da língua. O irrepetível em cada caso é a situação que
confere a essa mesma palavra significações tão distintas em cada um dos
enunciados.
Mas
para que esta construção de enunciados possa ser realizada, há que
levar em consideração um outro fenômeno extremamente rico de
possibilidades. É a distinção que Bakhtin vai estabelecer entre tema e
significação. Aqui, igualmente, pertence à significação aquilo que é
repetível, reiterável e que portanto se situa no plano da língua. O
conjunto de palavras de um dicionário está nesta situação: elas
apresentam uma significação que é socialmente compartilhável e que
garantem à língua a sua continuidade e à comunicação a sua
possibilidade. Já o tema é único em cada enunciado, corresponde a uma
significação global daquele enunciado e inclui uma série de elementos
que, além de não pertencer à língua, podem inclusive ser não-verbais.
Aqui, nesta minha fala, meus gestos, minha entonação, as pausas que
faço, as expressões faciais que assumo, minha forma de falar e de
vestir, tudo se inclui no conjunto do tema do enunciado. Um tema não
pode ser nunca exaustivamente delimitado e não se repete de uma
enunciação a outra.
Assim,
num enunciado estaremos diante de uma permanente dialética entre as
significações, já cristalizadas, e o tema, a cada vez outro. Na verdade
há uma luta permanente entre o velho e o novo a cada enunciado que
pronunciamos. O velho são as significações que herdamos ao aprender a
falar uma língua e ao longo de seu exercício social. O novo, aquilo que
cada situação de enunciação apresenta de novidade e de ato histórico
original. Posso assim afirmar, sem medo de erro, que vocês nunca leram
duas vezes o mesmo livro. Se o livro, materialmente, é o mesmo, o leitor
e a situação de leitura não podem sê-lo. Numa segunda leitura, o leitor
é um leitor que já conta com a experiência da primeira leitura, entre
uma e outra sua vida e suas convicções podem e devem ter mudado, e o
livro para ele é um livro que ele já conhece e de que tem uma primeira
leitura e, logo, não é o mesmo livro.
Este
exemplo reafirma a questão do tema e da significação. O livro, enquanto
objeto material, está dotado de um conjunto de palavras cuja
significação me imprescindível, ou quase, conhecer para que a leitura
seja possível. E aí estamos no plano da língua, no plano da
significação. Mas, sabemos todos, por óbvio, que conhecer cada uma das
palavras de um livro não significa havê-lo entendido. A leitura não é um
acúmulo de significações buscadas num dicionário. Se assim fosse, eu
ignorante do Alemão, com a ajuda de um bom dicionário e com uma boa dose
de disciplina germânica, poderia ler o Fausto de Goethe, no original.
E, mais que isso, um computador, igualmente amparado em um bom
dicionário da Língua Russa, dispensaria o meu fraterno amigo Paulo
Bezerra da tarefa hercúlea de traduzir Dostoiévski.
Não.
A leitura é adentrar de cabeça no tema e não ficar catando milho nos
dicionários, escritos ou não. Ler é tentar entender, recriando-as, as
circunstâncias em que o livro foi pensado e escrito; é adentrar pelas
possibilidades culturais da época; é comparar a sociedade em que o livro
foi escrito com aquela em que ele é lido; é construir um mundo
imaginário equivalente àquele que habitou o escritor antes, durante e
depois da escrita. E tudo isto constitui o tema deste grande enunciado
que é um livro. Se não o alcançarmos, a leitura se frustra e se torna um
exercício maçante de decodificação de palavras.
Creio
que com estas pinceladas, rápidas e superficiais, se possa fazer uma
idéia, ainda que pálida, de alguns dos conceitos chaves com que Mikhail
Mikhailovitch Bakhtin tenta pensar a questão da linguagem. Seria
inviável, no limite de uma palestra, tentar esgotar um assunto que ele
não conseguiu esgotar numa longa e produtiva existência pessoal e
intelectual.
Apenas
pretendi trazer algum ordenamento e alguma organização às idéias mais
gerais desse pensador genial que, com o riso e o carnaval, com a galhofa
e os destronamentos, tentou nos mostrar que a linguagem, como tudo o
que é humano, é sempre muito mais complexo do que pretende a arrogância
intelectual do saber acadêmico.
Para finalizar, bastaria lembrar que a sua tese de doutoramento — A Obra de François Rabelais: a Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento
— foi recusada pela Academia de Ciências da União Soviética. Para
alguém que sempre pensou na contra-mão dos discursos oficiais, que
valorizou a cultura popular, que resgatou a força da oralidade, que
valorizou o riso como forma de denúncia, foi realmente uma sorte. Se a
Academia de Ciências da União Soviética o houvesse aprovado como doutor,
isto hoje poderia comprometer a força irreverente e devastadora de seu
pensamento radicalmente revolucionário.
Rio de Janeiro, 27 a 29 de novembro de 2006.
Notas:
1 Saussure, Ferdinand de - Cours de Linguistique Générale. Paris:Payot, 1966. P. 252 Bakhtin. Mikhail. Estética da Criação Verbal. Tradução de Paulo Bezerra, edição eletrônica. Luis Filipe Ribeiro é mestre em Letras e Doutor em História, professor da Universidade Federal Fluminense, autor de Mulheres de Papel: um estudo do imaginário em José de Alencar e Machado de Assis, Niterói: Eduff, 1996. E-mail:lfilipe@revistabrasil.org
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quinta-feira, 27 de junho de 2013
O conceito de linguagem em Bakhtin
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